'Sandinista!' e a promessa que nunca se cumpriu

Juliana Alvim

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Eu não falo sobre isso há tantos anos, que parece que foi em outra vida que tudo isso foi tão importante para mim.

Há alguns dias eu voltei a ouvir Sandinista!, o manifesto humanista em forma de álbum triplo que o Clash deu ao mundo em fins de 1980. Fazia muito, mas muito tempo que eu não ouvia o álbum na íntegra, e a experiência de escutá-lo com ouvidos de certa forma frescos foi catártica. Parecia que eu nunca tinha ouvido aquelas faixas antes, mas eu sabia (quase) todas as letras. Foi um choque de poesia e novidade, mas me trouxe respostas como só o Clash conseguiu fazer até hoje.

Sandinista! é um álbum necessário e urgente nos tempos sombrios que vivemos, não só no Brasil, mas em outras partes dessa casa que tratamos com tanta desatenção e descaso, como se ela fosse durar para sempre, a que chamamos Terra. Ele é um chamado para que nos importemos mais, nos esforcemos mais. Mas ele também não esconde o desalento e o pessimismo, e a sensação de que, talvez, no fim, o mal vai mesmo prevalecer, e só nos restará assistir ao mundo ruir em chamas, enquanto nos perguntamos: o que teria acontecido se tivéssemos realmente feito a diferença?

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O maior impacto dessas (agora várias) audições do álbum foi conseguir passar quase incólume a “The Street Parade”, a única música do Sandinista! que sempre me fez chorar no melhor estilo “ugly cry”. Confesso que não sentir um nó se formando na garganta aos primeiros acordes é algo positivo para mim. Música e melancolia sempre andaram de mãos dadas na minha psique, e quando uma alimenta a outra, eu me transformo numa sombra de mim mesma.

No entanto, essa aparente dessensibilização não durou muito. Lá pela terceira ou quarta vez escutando “The Street Parade” eu já estava chorando. Agora, não só pela música em si, pela melodia, pelas harmonias, pela letra. Chorando também porque nunca vou saber exatamente o que Joe Strummer estava sentindo quando escreveu estes versos:

It’s not too hard to cry
In these crying times
I’ll take my broken heart
And take it home in parts

Por mais autoexplicativas que algumas passagens da letra sejam, o ethos geral que impulsionou a criação de “The Street Parade” continua um mistério. Joe morreu cedo demais, em 2002, aos 52 anos. Foi a experiência de morte de um ídolo que mais me abalou, mas mal sabia eu que teria uma vivência de perda muito mais próxima menos de 2 anos depois. Meu pai morreu um pouco mais velho que Joe, com 55 anos, e sua passagem, e tudo o que eu vivi nos 18 meses seguintes, quase me matou junto.

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À medida que o mito Joe Strummer foi sendo desconstruído após sua morte, meu encantamento — meu fanatismo — pelo Clash foi diminuindo e ocupando um segundo plano, após quase tomar o protagonismo da minha preferência musical do U2, que há 26 anos ocupa esse lugar na minha vida. O herói que eu admirava de maneira quase cega, e totalmente idealista (e idealizada), era um homem, no fim das contas. Se dobrou a pecados tão humanos e por isso encerrou de forma prematura a construção de um legado que — se hoje, 35 anos depois do fim não oficial da banda, já é épico — se tornaria eterno e universal.

Eu ainda acredito que, se o Clash tivesse durado mais alguns anos, dizer que os Beatles são a maior banda de rock de todos os tempos hoje seria uma heresia sem perdão. E só me resta imaginar o quão longe esse legado chegaria no atual cenário musical e tecnológico. Quem seria Joe Strummer hoje, na era do consumo incessante de informação? Quantas entrevistas ele não teria dado? Quantos insights ele não nos daria sobre suas motivações e sentimentos? O que ele diria sobre Trump? Sobre o nosso inominável “presidente”? Sobre a ascensão da extrema direita no Leste Europeu? Sobre o terrorismo islâmico? Sobre o aquecimento global?

Eu realmente queria ter essas respostas. Eu realmente preferiria viver num mundo onde eu poderia contar com essas respostas. Um mundo em que Joe teria um perfil numa rede social e compartilharia sua visão de mundo com gente tão diversa e em lugares tão distantes. Eu acho que eu e o mundo fomos roubados dessa oportunidade.

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Eu confesso que, na minha cabeça, este texto fazia mais sentido, mas tem sido cada vez mais difícil escrever meus pensamentos com precisão. Fico sempre com a sensação de que não falei tudo o que queria, e de que o que eu falei de fato não representa totalmente aquilo que eu pretendia comunicar. A sensação de estar “lost in translation” é permanente. Talvez isso tenha a ver com os tempos atuais. Talvez seja só a idade e o fato da minha memória estar se esvaindo. Talvez seja uma real desconexão entre meus dedos, minha mente e meu coração. Difícil saber.

Agora, o que eu realmente sei é que eu preciso, muito mesmo, continuar escutando o Sandinista!. Assistir ao vídeo abaixo (que não tem nenhuma faixa desse álbum, por sinal) me fez perceber que o Clash faz muita falta na minha vida. Eu preciso dessa energia novamente. Eu preciso dessa fé. Eu preciso dessa melancolia, mesmo que ela enfraqueça o meu coração. Eu preciso voltar a acreditar em alguma coisa, ou me convencer de vez de que não há mais nada em que acreditar, a não ser no amor.

As respostas que o Clash me traz nunca foram dadas por nenhuma religião. A música é, e sempre foi, a minha verdadeira fé, e o Clash é o templo onde eu procuro por mim mesma e pela humanidade que se perdeu em meio à selvageria. Hoje, eu volto a esse templo e peço perdão por ter ficado tanto tempo longe.

E eu sei que, se Joe Strummer estivesse vivo hoje, estas palavras descreveriam o estado de espírito de alguém que parecia travar uma luta incessante entre ideais globalistas, a vontade de se tornar um com a humanidade, o desejo de fama e poder e o anseio de ser apenas um homem comum:

I was in this place
The first church of the city
I saw tears on the face
The face of a visionary

Though I will disappear
To join the street parade
Disappear and fade
Into the street parade

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